Murphy não é um livro de enredo muito rico ou personagens extremamente bem elaborados, é, antes de qualquer extensão minha, um grito pelo direito de não ser.
Escrito entre 1935 e 1936 pelo dramaturgo irlandês Samuel Beckett, modernista tardio e uma das maiores figuras do Teatro do Absurdo (movimento teatral fundamentado na visão de que a vida dos homens é sem propósito e que a luta pelo controle do próprio destino é fracassada, caracterizado por enredos fora da realidade e personagens com comportamentos absurdos), Murphy é um romance satírico, picaresco e de riqueza metafórica tamanha que chega a ser quase intraduzível, já que muitas das referências filosóficas e piadas muito bem pensadas se perdem com a tradução e precisam ser explicadas ao leitor posteriormente.
Os personagens do livro estão presos a uma ciranda afetiva que gira em torno de Murphy e só podem prosseguir com suas vidas após achá-lo. Sabe-se tão pouco deles que não parecem mais do que nomes numa página a procura do controverso Murphy, que nada quer além da perfeita harmonia entre o corpo e o espírito “Primeiro, dava prazer ao corpo, apaziguava seu corpo. Depois, libertava-o em seu espírito. Pois só quando o corpo estava apaziguado, ele podia começar a viver no espírito (…)”, buscando não paz espiritual, mas o nada que tudo é da existência (assim como ela mesma nada é) “fechar os olhos e não sentir nada, somente ele e o vazio”.
Enquanto os demais personagens têm o psicológico exposto de forma nua e sem tabus, mais real possível, seus diálogos nada tem de real, sequer fazem sentido algum; até o próprio narrador ridiculariza os temas e convenções sociais. Como a realidade não tem sentido, de que valem os diálogos bem elaborados se não fazem diferença na apreensão do texto? Beckett zomba da nossa tentativa de adequar linguagem e realidade e nos joga uma enxurrada de diálogos insanos e situações bizarras, apenas para nos dar a lição de que somos “uma partícula de pó na escuridão de uma liberdade absoluta”.
O desejo de não ser, de apenas estar, de não sentir-se mais partido em dois (corpo e espírito), de não ser nada para poder ser tudo, evidencia-se quando Murphy é pressionado a procurar um trabalho “Você faz o que você é, você faz uma ínfima fração do que você é, você tolera que uma mínima parte do seu ser escoe em fazer […] Inevitável e tedioso” . Já a representação da banalidade dos acontecimentos diários se vê quando ele pede que suas cinzas sejam jogadas privada adentro sem cerimonia ou demonstração de tristeza, numa das construções mais incríveis que já li:
Algumas horas depois, Cooper apanhou o pacote de cinzas do bolso, onde por razões de segurança o deixara mais cedo na mesma noite, e atirou-o descontrolado na direção de um homem que o ofendera gravemente. O pacote voou, explodiu contra a parede, espalhando-se pelo chão, onde de imediato se tornou objeto dos golpes mais variados, pontapés, esquivas, socos, cabeçadas e até alguma consideração pelo código de cavalheirismo. Na hora de fechar, o corpo, o espírito e alma de Murphy estavam livremente distribuídos pelo chão do pub; e, antes que a aurora viesse outra vez acinzentar a terra, havia sido varrido fora, com a areia, a cerveja, as bitucas, os copos, os fósforos, o cuspe e o vômito.